sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Codinome Leopardos no Templo

Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; isso se repete sempre; finalmente, torna-se previsível e é incorporado ao ritual.
O que significam essas linhas escritas pelo grande Franz Kafka? Trata-se de um texto literário? Ou de uma mensagem secreta, envolvendo um atentado político capaz de subverter a Europa?
Benjamin Kantarovitch, o personagem de Os leopardos de Kafka, acredita na segunda hipótese. Afinal, no dramático ano de 1916, às vésperas dos "dez dias que abalaram o mundo", ele saiu de sua aldeia judaica no interior da Rússia e foi a Praga cumprir uma missão revolucionária – planejada por ninguém menos do que Trotski.
Benjamin está certo de que passará à história. O problema é que, antes de ser revolucionário, ele é atrapalhado. Perde o envelope contendo o nome do agente com quem deverá entrar em contato e, por engano, chega a Kafka, que inadvertidamente também contribui para o imbróglio, pensando que Benjamin é outra pessoa. Sucedem-se as confusões, que terão desdobramentos inclusive no Brasil – para onde Benjamin emigrará –, à época do golpe de 1964. O jovem revolucionário russo se verá às voltas com a repressão brasileira. Kafkiana, esta situação? Certamente. Mas aqui o pesadelo é narrado com o humor característico de Moacyr Scliar. [Orelha do livro Os leopardos de Kafka, publicado em 2000]
Início da história:
RELATÓRIO CONFIDENCIAL 125/65
Senhor Delegado: tem por finalidade este relatório informar a V.S. acerca da prisão do elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, detido na noite de 24 para 25 de novembro de 1965 numa das ruas centrais ele Porto Alegre. Dito elemento, conhecido militante nos meios universitários da cidade, vinha sendo seguido há dois meses por nossos agentes. Por volta das 21 horas Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, dirigiu-se para o apartamento de sua namorada Beatriz Gonçalves. Outros elementos, seis no total, chegaram ao local, sozinhos ou em duplas – obviamente para uma reunião secreta. Às 23h30 os elementos deixaram o local, ocasião em que lhes foi dada voz de prisão pelo agente Roberval. Sete elementos, incluindo Beatriz Gonçalves, conseguiram fugir, mas o elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, que puxa de uma perna, não pôde correr. Detido e conduzido à sede da Unidade de Operações Especiais, foi interrogado. Nesse procedimento utilizou-se o auxílio de choques elétricos, interrompidos por duas razões: 1) sucessivos desmaios do elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, e 2) falta de energia elétrica. Desta maneira, o interrogatório não pôde ser completado. O elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, repetiu várias vezes que a reunião tinha por objetivo discutir literatura e tomar chimarrão. No apartamento foi efetivamente encontrada uma cuia de chimarrão ainda morna e vários livros, o que naturalmente não invalida a hipótese de reunião subversiva. O elemento Jaime Kontarovitch, codinome Cantareira, foi revistado. Em seus bolsos havia: 1) poucas notas e moedas; 2) um lenço sujo e rasgado; 3) um toco de lápis; 4) dois comprimidos de aspirina; 5) um papel, cuidadosamente dobrado, com as seguintes palavras datilografadas em alemão:
Leoparden in Tempel
Leoparden brechen in den Tempel ein und saufen die Opferkrüge leer; das wiederholt sich immer wieder; schlieslich kann man es vorausberechnen, und es wird ein Teil der Zeremonie.
Abaixo do texto, a assinatura de um certo Franz Kafka.
O papel, amarelado, parece bastante antigo. Cremos, contudo, que isso é um truque, e que se trata, na realidade, de uma mensagem, possivelmente em código; estamos aguardando a tradução para o português, solicitada em caráter de urgência, para melhor avaliação. Com base em dita tradução, continuaremos investigando o elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, agora com vistas a conexões subversivas internacionais.
Com a abertura dos arquivos dos serviços secretos que operaram no Brasil a partir do golpe de 1964, numerosos documentos vieram à luz, entre eles o relatório confidencial acima transcrito, de que tenho uma cópia.
Jaime Kantarovitch, apelidado Cantareira por um amigo carioca, era meu primo. Nunca fomos íntimos, mas eu gostava dele e respeitava-o muito. O relatório remete a uma surpreendente história que envolve o próprio Jaime, o nosso tio-avô Benjamin Kantarovitch – e Franz Kafka.