sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quero que vá tudo pra puta que o pariu

O historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo diz que em "Roberto Carlos em detalhes" – livro que teve a venda suspensa a pedido do cantor – que Quero que vá tudo para o inferno talvez seja a música que mais gastou páginas falando, é um clássico da música brasileira. Antes desta música ele era um cantor qualquer, depois dela ele se tornou um mito. É uma canção de amor. [...] Ele tinha uma namorada, Magda Fonseca, que teve que ir embora para os EUA para se separarem. Ela trabalhava em uma rádio no Rio de Janeiro e o pai trabalhava em várias rádios. Quando o Roberto chegou com um disquinho os dois se conheceram e começaram a namorar. Isso foi de 1962 a 1965. Ele era um artista comum. E estava em Osasco fazendo um show no inverno de 65 e nos bastidores do cinema começou a cantarolar um refrão que é: “Quero que você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”. Fez a música com o Erasmo e mostrou para ela que ouviu em primeira mão. Isto foi um clássico instantâneo, onde todos não tiveram dúvida de que seria um estouro. Ele estava há três meses no programa da Jovem Guarda e o sucesso desta música foi que chamou a atenção para este programa.
Por um lance de marketing, o LP da música "Quero que vá tudo para o inferno" foi batizado com o mesmo nome do recém lançado (em 1965) programa da TV Record e apresentado pelo rei 
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Na época, um padre carioca, Antônio Neves, reagiu antes mesmo de ouvir a nova canção. “Eu levei um choque quando soube do título era Quero que vá tudo pro inferno. Imagine se a mocidade toda começa a cantar isso!

Uma canção que assustava alguém apenas com a leitura de seu título, o que não poderia provocar quando todos começassem a ouvir o refrão com aquelas mesmas palavras? “Para a época, aquilo foi realmente uma coisa muito forte, agressiva. É como se hoje fosse lançada uma música com o refrão “quero que vá tudo pra puta que o pariu”, compara a cantora Wanderléa. Essa comparação é pertinente, mas, talvez, depois da liberação dos costumes e de tantas outras músicas com o tema da libertinagem, um puta que pariu hoje causasse menos impacto do que o provocado pela canção de Roberto Carlos em 1965. “Aquilo assustou muita gente naquele ambiente de forte religiosidade. Lembro que havia um comentário geral das pessoas criticando Roberto: “esse cara não tem o direito de dizer isso”, afirma o cantor Wando. De fato, Quero que vá tudo pro inferno atingiu em cheio a sensibilidade de um país sufocado pela repressão moral, política e social. Enfim, uma sociedade reprimida que, de repente, foi tomada por uma canção com um grito de guerra arrebatador. A canção provocou e perturbou os setores conservadores, ou seja, a maioria da sociedade brasileira. Na época, muitas emissoras de rádio se recusaram a tocar a música por determinação do proprietário, numa censura interna motivada por razões religiosas.

Quero que vá tudo pro inferno foi uma febre, uma verdadeira coqueluche, como se dizia na época. E ninguém podia evitar a música de Roberto Carlos, que alcançava mesmo quem não a procurasse, mesmo quem não quisesse, mesmo quem não gostasse. A letra não seguia a temperatura ambiente. Em pleno verão, sob um sol de 40 graus à sombra, toda a juventude brasileira, suando e resfolegando, cantava freneticamente o refrão “Quero que você me aqueça nesse inverno/ e que tudo o mais vá pro inferno...”. Foi talvez a primeira vez que alguém ousou praguejar através de uma canção popular no Brasil. Nas ruas das principais capitais do país, muitos transeuntes paravam diante das lojas de disco para escutá-la.

O sucesso da música foi tão grande e impactante que muitos ainda se lembram onde estavam e o que sentiram ao ouvi-la pela primeira vez. É o caso, por exemplo, da cantora Fafá de Belém, na época uma menina de dez anos de idade. “Nunca me esqueço. Eu estava dentro da Rural Willys de papai, em frente à sorveteria Santa Marta, em Belém, tomando um sorvete, quando começou a tocar Quero que vá tudo pro inferno. Falei na hora: “Humm, como esse cara é moderno”. Outro que também se lembra dessa primeira vez em que escutou a canção é o cantor e compositor pernambucano Alceu Valença, na época um jovem estudante de dezenove anos. “Eu me lembro que estava numa festa, num bairro em Recife, o carro parado e eu tomando alguma coisa, já meio bêbado. E de repente começou a tocar Quero que vá tudo pro inferno. Eu achei aquilo uma coisa muito forte e bonita.”

O futuro cantor e compositor Djavan tinha dezesseis anos quando ouviu a música de Roberto Carlos pela primeira vez numa rádio de Alagoas. “Foi um impacto, fiquei muito empolgado. Quero que vá tudo pro inferno foi uma das primeiras músicas que aprendi a tocar no violão.” Quem também estava descobrindo o instrumento nessa época foi o então adolescente cearense Raimundo Fagner. “Me lembro que logo depois de ouvir essa música eu corri para o violão. E em pouco tempo estava tocando porque era um tema fácil e que todos cantavam juntos, em coro. A música mexia em muitas feridas e com grande alegria.” Na época, o cantor e compositor Zé Ramalho tinha quinze anos e morava em Campina Grande, cidade do interior da Paraíba, que também não ficou imune ao sucesso de Quero que vá tudo pro inferno. “A música tocava alucinadamente na rádio e provocava uma emoção coletiva, pois todos paravam tudo para ouvir. Adorava aqueles arpejos que o cara faz na guitarra, simples, mas uma aula de base, e também o jeito agressivo de Roberto cantar e, claro, a mensagem de rebeldia.” Para Zé Ramalho, a música se confundia com o cenário de repressão pós-golpe militar que na época ele ainda não compreendia direito. “Eu me lembro de ver a polícia correndo atrás de estudantes na rua, carros revirados, ônibus incendiados e Quero que vá tudo pro inferno tocando no rádio. Era um cenário louco, um apocalipse danado. E eu ali, inocente, puro e besta, como diz Raul Seixas, vendo estas coisas acontecerem e cheio de sonhos na cabeça.”

Assim como repercutiu no Nordeste, terra do baião de Luiz Gonzaga, a música de Roberto Carlos alcançou também os morros cariocas, berço de sambistas como Ismael Silva e Cartola. O cantor e compositor Luiz Melodia é uma testemunha disso. Ele cresceu entre o morro de São Carlos e o largo do Estácio, uma área mitológica do Rio de Janeiro, e foi ali que ouviu Quero que vá tudo pro inferno pela primeira vez. “Foi uma febre no morro. A gente ouvia a música o dia inteiro.”

Nem Nordeste nem morros cariocas, na época a cantora Nana Caymmi estava morando em Caracas, para onde se mudara depois de se casar com um venezuelano. E mesmo ali ela foi alcançada pelo sucesso da música de Roberto Carlos. “Quero que vá tudo pro inferno foi um estouro na Venezuela. Pra mim foi uma grata surpresa porque até então não conhecia nada de Roberto Carlos. E eu cantava muito essa música para minhas filhas Stelinha e Denise. Irreverente como sou, adoro aquela letra.”

Sem compartilhar do mesmo entusiasmo de Nana, a escritora Edinha Diniz também foi alcançada pelo sucesso da música, mesmo estando em alto-mar. Em fevereiro de 1966, embarcou no porto do Rio de Janeiro com destino a Nápoles em um navio italiano da linha Federico C que fazia a rota Buenos Aires-Roma. “Durante a viagem, Quero que vá tudo pro inferno ocupava inteiramente o ar. Era uma febre. Lembro que nas máquinas de jukebox do navio havia muitas outras coisas para ouvir, mas o que se tocava mesmo era a música de Roberto Carlos. Os jovens argentinos a bordo eram fanáticos pela canção e a cantavam sem parar. De todas as formas, aquela minha viagem foi ao som de Quero que vá tudo pro inferno.”

Como explicar um sucesso tão grande e fulminante? O que essa canção trazia de tão especial? Na época, educadores, sociólogos e psicólogos teorizaram sobre o tema e muitos deles amarraram interpretações para além de um mero drama amoroso. O refrão conteria um grito rebelde contra todos os males existenciais e urbanos: repressão familiar, social e política, baixos salários etc. “Quero que vá tudo pro inferno deu voz a um estado de espírito geral da atualidade brasileira”, afirmou o poeta Augusto de Campos. “Na época, Décio Pignatari era meu professor de Teoria da Comunicação e ele fazia interpretações semióticas da letra dessa música, metáforas com a ditadura”, lembra Nelson Motta. Até mesmo Alziro Zarur, o carismático líder da Legião da Boa Vontade, se manifestou sobre o fenômeno. “Compreendo perfeitamente o drama da juventude rebelada. É um fenômeno da nossa época. São os jovens inconformados em todo o mundo com a política dos velhos que desgovernam as nações. No setor musical Roberto Carlos encarna esse protesto que pode ser sintetizado em Quero que vá tudo pro inferno.”

A repercussão da música chegou até as áreas rurais do Norte e Nordeste do país, onde Roberto Carlos passou a ser figura de lenda sertaneja. Nas feiras nordestinas, os cantadores faziam variações sobre a letra e a melodia. A literatura de cordel também explorou o tema em histórias como A briga que Satanás teve com Roberto Carlos. A vendagem foi grande e logo depois surgiu outro livreto com a continuação da briga do Tinhoso com o ídolo da juventude. É curioso observar que naquele momento cantores da MPB como Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré estavam recolhendo temas folclóricos para utilizar em seus trabalhos musicais.

Já os artistas do folclore nordestino faziam um caminho inverso: pegavam um tema urbano de Roberto Carlos e o folclorizavam. Não será de todo impossível que, daqui a uma centena de anos, algum pesquisador desavisado recolha numa feira do Nordeste a melodia de Quero que vá tudo pro inferno como um tema do folclore.

Por tudo isso, esta é uma das mais importantes canções produzidas no Brasil. Nesse sentido, ela bem poderia ser o outro lado de um disco com Chega de saudade, de Tom e Vinícius, na versão bossa nova de João Gilberto. As duas canções ganharam projeção histórica e são marcos referenciais de movimentos musicais. E ambas são ainda mais emblemáticas porque, enquanto a gravação de João Gilberto resultou na canção de maior impacto estético da história da MPB, a de Roberto Carlos foi certamente a de maior impacto social.

Pode-se dizer que, naquele ano de 1965, o rock’n’roll ganhou três grandes temas: Help!, dos Beatles, Satisfaction, dos  Rolling Stones e... Quero que vá tudo pro inferno, de Roberto Carlos – que só não alcançou a mesma visibilidade das outras duas porque foi composta e gravada em português. Não se enganem: qualquer banda de rock da época teria incendiado o mundo com a gravação de I want that everything goes to hell. Ela é tão rock’n’roll quanto Help! ou Satisfaction