sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Duas queridas figuras I



Paulo Daloli nos conta: o desembargador Vieira Pires, aposentando-se, fixou residência em Torres, em casa defronte ao Hotel Farol, e fez seu ponto de conversas no banco ali em frente ou na sala da farmácia do Cidade, na mesma Rua de Cima; outro interesse do aposentado, de mirrada figura física, era o de acorrer, pressuroso, à chegada dos ônibus que encostavam ali no Hotel Sartori, vindos da Capital.
Em certa tarde calorosa, mal aberta a porta do coletivo recém-chegado, estava a pequena figura do magistrado tentando vislumbrar pelos vidros do veículo a muito aguardada pessoa de um amigo, que o avisara da sua chegada naquele mesmo dia; quando um bem nutrido caixeiro-viajante, engravatado, vendo a pequena figura do doutor, gritou-lhe:
- Guri, sabes onde fica o Hotel Farol?
E ante o "sei sim, sei", continuou:
- Podes com estas duas malas?
E ouvindo o "posso, sim senhor", comandou:
- Pois vai na frente e me mostra o hotel onde vou ficar. E começaram a andar.
Entrados no salão do estabelecimento, abanando-se com seu panamá suado o viajante perguntou ao arquejante maleiro:
- E agora, quanto te devo?
E a resposta:
- Fiz o que o senhor pediu; o que o senhor me der eu aceito como justo.
Foi quando o recepcionista Pozzi, atrás do balcão, ante a surpreendente cena:
- Mas desembargador, o senhor carregando malas?
Então foi a vez do caixeiro-viajante empalidecer e gaguejar:
- O senhor me desculpe, doutor. Eu não sabia!
E o doutor Vieira Pires, sério:
- O senhor não tem nada que desculpar. Fui eu que aceitei o trabalho: e esta moeda de 400 réis de pagamento, que o senhor me deu, eu vou guardar pelo resto da minha vida com todo carinho, pois foi o único dinheiro que ganhei fazendo força!

Guido Muri (1916-2010)
Remembranças de Torres, As Vivências de uma Comunidade (1996)