Matéria publicada no Coojornal, jornal da extinta Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (1982) (Os grifos são dos autores):
Esta "Carta ao senhor legislador da lei sobre estupefacientes" é um texto de Antonin Artaud* que veio a público em 1925, dentro de "L'Ombilic des Limbes", publicado na coleção "Une Oeuvre, Un Portrait".
Carta ao autor da lei sobre estupefacientes
Senhor legislador,
Senhor legislador da lei de 1916, aprovada pelo decreto de julho de 1917 sobre estupefacientes, és um castrado.
Tua lei não serve mais que para incomodar a indústria farmacêutica mundial, sem proveito algum para o nível toxicômano da nação
porque
1º O número de toxicômanos que se abastecem nas farmácias, é ínfimo;
2º Os verdadeiros toxicômanos não se abastecem nas farmácias;
3º Os toxicômanos que se abastecem nas farmácias são todos doentes;
4º O número de toxicômanos doentes é ínfimo em relação ao de toxicômanos voluptuosos;
5º As restrições farmacêuticas da droga não reprimirão jamais aos toxicômanos voluptuosos e organizados;
6º Haverá sempre traficantes;
7º Haverá sempre toxicômanos por vício de forma, por paixão;
8º Os toxicômanos doentes têm sobre a sociedade um direito imprescritível, que é o de que sejam deixados em paz.
É sobretudo uma questão de consciência.
A lei sobre estupefacientes põe em mãos do inspetor-usurpador da saúde pública, o direito de dispor sobre a dor dos homens; em uma pretensão singular da medicina moderna, querer impor suas regras à consciência de cada um. Todos os balidos oficiais da lei não têm poder de ação frente a este fato de consciência: a saber que, mais ainda que da morte, eu sou dono de minha dor. Todo homem é juiz, e juiz exclusivo, da quantidade de dor física, ou também de vacuidade mental, que possa honestamente suportar.
Lucidez ou não lucidez, há uma lucidez que nenhuma enfermidade me tirará jamais: é aquela que me dita o sentimento de minha vida física. E se eu perdi minha lucidez, a medicina não tem outra coisa que fazer senão dar-me as substâncias que me permitam recuperar o uso desta lucidez.
Senhores ditadores da escola farmacêutica da França, vocês são uns pedantes mesquinhos: há uma coisa que deveriam considerar melhor: o ópio é esta imprescritível e imperiosa substância que permite retornar à vida de sua alma, aqueles que tiveram a desgraça de havê-la perdido.
Há um mal contra o qual o ópio é soberano, e este mal se chama Angústia, em sua forma mental, médica, psicológica, lógica ou farmacêutica, como vocês queiram.
A Angústia que faz os loucos.
A Angústia que faz os suicidas.
A Angústia que faz os condenados.
A Angústia que a medicina não conhece.
A Angústia que vosso doutor não entende.
A Angústia que tira a vida.
A Angústia que corta o cordão umbilical da vida.
Por vossa lei iníqua vocês põem em mãos de pessoas nas quais não tenho confiança nenhuma, castrados em medicina, farmacêuticos de merda, juízes corruptos, doutores, parteiras, inspetores doutorais, o direito a dispor de minha angústia, de uma angústia que é em mim tão aguda como as agulhas de todas as bruxas do inferno.
Temores do corpo ou da alma, não existe sismógrafo humano que permita, a quem me olhe, chegar a uma avaliação de minha dor mais precisa que aquela, fulminante, de meu espírito!
Toda a desgraçada ciência dos homens não é superior ao conhecimento imediato que posso ter de meu ser. Sou o único juiz do que está em mim.
Voltem às suas saletinhas, médicos parasitas, e tu também, senhor Legislador Moutonnier, que não é por amor dos homens que deliras, é por tradição de imbecilidade. Tua ignorância sobre aquilo que é um homem, só é comparável à tua estupidez pretendendo limitá-lo. Desejo que tua lei caia sobre teu pai, sobre tua mãe, sobre tua mulher e teus filhos, e toda tua descendência. E mesmo assim, suporto tua lei.
* O escritor francês Antonin Artaud nasceu em 1896 (Marselha) e morreu em 1948. Poeta surrealista e homem de teatro e cinema. Suas idéias só tiveram sucesso após sua morte e atualmente exercem notável influência no teatro moderno.
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
Tradição de imbecilidade
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