[...]
Em minhas
andanças na Terra tenho visto, admirado, espíritos desencarnados entrarem na
fila do ônibus, esperar pelo táxi, e há até alguns que, não tendo tido chance
de fazer uma viagem ao redor do mundo quando vestiam a carne, realizam esse
desejo divertindo-se em conhecer lugares históricos ficando em ricos hotéis ou
iates de luxo – hoje, aliás, pouco numerosos. Eles se comprazem em fazer
turismo e em participarem da vida social da elite.
Certa feita,
quando eu acompanhava um amigo encarnado em uma dessas viagens, preocupado
porque ele estava na iminência de ter um enfarte e eu propusera a assisti-lo se
necessário – naturalmente sem que ele me visse, porque, além de não crer em
fantasmas, ele ficaria apavorado – presenciei um caso assim.
Confesso que
me deliciei nessa viagem revendo o cotidiano dos privilegiados sociais, com os
entretenimentos habituais dos navios de luxo e a disposição dos viajantes de
aproveitarem tudo, muitos dos quais realizando um sonho há muito acariciado.
Eu pude
observar um espírito que viajava como turista, divertindo-se a valer. Não me
contive. A experiência era inusitada. Espírito turista, eu nunca tinha ouvido
falar.
Sintonizei
com ele para ser notado e me aproximei entabulando conversação:
– Como é
lindo o dia, não? – iniciei, na falta de outro tema melhor.
Ele me olhou
com naturalidade. Era alto, elegante, vestia-se com roupa esporte, e aparentava
uns 40 anos.
– É –
respondeu, bem humorado. – Está ótimo.
Tentei
sentir-lhe o pensamento. Estava calmo.
– Não o tinha
visto antes – tornou ele educadamente.
– Cheguei
hoje – esclareci.
– Como veio?
Algum avião especial?
– É – tornei
embaraçado. Estávamos em alto mar.
– Você deve
ser importante. Sabe, eu esperei toda minha vida por essa hora. A viagem era
meu sonho quando vivia na Terra.
– Ah! – fiz
aliviado. Ele sabia! Como podia ser? Ele continuou alegre:
– Trabalhei
como funcionário público toda minha vida. Jamais pude sair dos limites do meu
Estado. Eu sou do Rio de Janeiro. Mas colecionei todos os roteiros de viagens e
sonhei ganhar no bicho para poder realizar esse desejo. Nunca pude. Casei, tive
dois filhos e aí, então, vivia enforcado.
Curioso,
indaguei:
– E agora?
Como conseguiu?
– Bem, a
princípio não pensei que pudesse. Fui doente durante muito tempo e depois que
deixei a Terra não sarei tão depressa quanto se diz. Sempre pensei que quando a
gente morresse pudesse ver tudo, saber tudo, e que as doenças eram do corpo.
Bateu no meu
ombro amigavelmente e continuou:
– Puro
engano. Tive que ir para o hospital. Lá, fui bem tratado; afinal, acho que
nunca fiz mal a ninguém. Mas eu não conhecia pessoa alguma. Outro engano meu,
eu pensava rever meus parentes mortos. Ninguém me estava esperando. Então eu
pensei: onde ir? Uma enfermeira gentil queria levar-me a uma colônia de recuperação,
dizendo que eu precisava refazer-me, mas eu acho que ela tinha intenção de me
abrigar, acreditando que eu não tivesse como me manter. Não gosto de ser pesado
aos outros. Sei cuidar de mim.
Olhei-o e a
custo consegui esconder a estupefação. Estava falando tranquila e educadamente.
– Continue –
pedi.
– Bem.
Insistiram para que eu ficasse, mas resisti. Afinal, estava morto. A escravidão
tinha se acabado. Não era mais funcionário público, estava livre do casamento,
dos filhos, do aluguel, do alfaiate, do mercado, do hospital, do horário, de
tudo. Queriam aprisionar-me de novo. Acha que eu iria?
– Eles não
queriam prendê-lo, queriam ajudar a sua recuperação – arrisquei, cauteloso.
– Sei que
tinham boa intenção, mas eu tinha sede de viver, ver o mundo, ser livre. Saí do
hospital deliciado, sentindo o gosto da liberdade! Pode imaginar o que seja?
– Posso –
respondi convicto.
– Sem rumo,
onde ir? Isso certamente me apavoraria na carne; agora, me fascinava. O mundo
era meu! Tudo quanto me fora proibido
pela falta de dinheiro, agora eu poderia fazer. Tomei o ônibus e calmamente
viajei, sem pensar no troco, no cobrador irritadiço, nos empurrões e no cheiro
de suor. Isso não me afetava. Fui a uma agência de viagens e lá procurei saber
do próximo cruzeiro. Queria viajar, ver outros povos, outros países; agora,
aqui estou.
Parecia
simples. Mas eu estava admirado.
– Está
apreciando a viagem?
– Muito. A
comida é de primeira, as bebidas são estrangeiras, e os divertimentos muito
agradáveis.
– Você se
alimenta bem? – indaguei curioso.
– Muito bem.
Você sabe, a comida é muito bem feita e muito variada.
– Mas como
você pode comer sem corpo?
Ele riu da
minha ingenuidade.
– Você passa
fome?
– Não. Tenho
o suficiente.
– Pois eu
posso escolher conforme o meu capricho. Há pessoas de gostos diferentes, e é só
me ligar-me a elas e apreciar. Elas ficam alegres, nem percebem que dividem
comigo.
Apesar de
conhecer o assunto, fiquei um pouco chocado.
– Não acha
que poderia passar sem isso? – aventurei com naturalidade.
– De modo
algum. Como poderia ficar sem comer? Agora preciso ir. Vou jogar um pouco de
pôquer. – Diante da minha estupefação, ajuntou: – É divertido. Posso ver as
cartas do adversário e escolho o meu parceiro, ajudo-o a jogar. Ganhamos
sempre, é claro. Depois festejamos juntos, bebendo um pouco ou namorando belas
mulheres. Agora preciso ir. Acho que já vi sua cara em algum lugar. Por acaso
morou no Rio de Janeiro?
– Morei –
respondi meio sem jeito.
– Onde será
que já nos vimos antes?
Ele se foi,
contrafeito; custou-me um pouco aceitar aquilo a que acabara de assistir.
Durante vários dias que passei no navio, ou que a ele voltei para ver meu
amigo, pude observá-lo, alegre, ativo, sempre ao lado de algumas pessoas às
quais envolvia com facilidade, participando de suas vidas.
Parece
injusto isso? Não tenho capacidade para julgar. Mas até quando ele permanecerá
assim? Só Deus sabe. O que eu notei é que ele, apesar de tudo, só passava por
portas abertas, caminhava como os demais, e inclusive mudava de roupas conforme
a hora e a atividade, o que me surprendeu muito.
[...]
Em todo o
caso, preciso esclarecer que, apesar do que vi, nem sempre o espírito consegue
se transformar em turista depois da morte. Não planejem viagem desse porte,
porque aquele pobre amigo, depois de algum tempo, foi recolhido a um sanatório
de uma colônia extraterrena em péssimo estado, viciado em álcool, em jogo e em
dolorosas condições.
Quando me
interessei pelo seu caso, fiquei sabendo que ele, em encarnação anterior, tinha
sido um estróina que botara fora a fortuna paterna e, depois de longo
sofrimento, deliberara renascer, tendo solicitado como auxílio a falta de dinheiro,
os encargos de família, o emprego contensivo.
Triste, não?
Aguentou tudo na carne, mas, assim que pôde, realizou tudo de novo.
[...]
"Bate-papo com
o Além", de Zíbia Gasparetto pelo espírito Silveira Sampaio (1980).