terça-feira, 31 de março de 2015

Espírito turista

[...]
Em minhas andanças na Terra tenho visto, admirado, espíritos desencarnados entrarem na fila do ônibus, esperar pelo táxi, e há até alguns que, não tendo tido chance de fazer uma viagem ao redor do mundo quando vestiam a carne, realizam esse desejo divertindo-se em conhecer lugares históricos ficando em ricos hotéis ou iates de luxo ​– hoje, aliás, pouco numerosos. Eles se comprazem em fazer turismo e em participarem da vida social da elite.
Certa feita, quando eu acompanhava um amigo encarnado em uma dessas viagens, preocupado porque ele estava na iminência de ter um enfarte e eu propusera a assisti-lo se necessário ​– naturalmente sem que ele me visse, porque, além de não crer em fantasmas, ele ficaria apavorado ​– presenciei um caso assim.
Confesso que me deliciei nessa viagem revendo o cotidiano dos privilegiados sociais, com os entretenimentos habituais dos navios de luxo e a disposição dos viajantes de aproveitarem tudo, muitos dos quais realizando um sonho há muito acariciado.
Eu pude observar um espírito que viajava como turista, divertindo-se a valer. Não me contive. A experiência era inusitada. Espírito turista, eu nunca tinha ouvido falar.
Sintonizei com ele para ser notado e me aproximei entabulando conversação:
​– Como é lindo o dia, não? ​– iniciei, na falta de outro tema melhor.
Ele me olhou com naturalidade. Era alto, elegante, vestia-se com roupa esporte, e aparentava uns 40 anos.
– É – respondeu, bem humorado. – Está ótimo.
Tentei sentir-lhe o pensamento. Estava calmo.
– Não o tinha visto antes – tornou ele educadamente.
– Cheguei hoje – esclareci.
– Como veio? Algum avião especial?
– É – tornei embaraçado. Estávamos em alto mar.
– Você deve ser importante. Sabe, eu esperei toda minha vida por essa hora. A viagem era meu sonho quando vivia na Terra.
– Ah! – fiz aliviado. Ele sabia! Como podia ser? Ele continuou alegre:
– Trabalhei como funcionário público toda minha vida. Jamais pude sair dos limites do meu Estado. Eu sou do Rio de Janeiro. Mas colecionei todos os roteiros de viagens e sonhei ganhar no bicho para poder realizar esse desejo. Nunca pude. Casei, tive dois filhos e aí, então, vivia enforcado.
Curioso, indaguei:
– E agora? Como conseguiu?
– Bem, a princípio não pensei que pudesse. Fui doente durante muito tempo e depois que deixei a Terra não sarei tão depressa quanto se diz. Sempre pensei que quando a gente morresse pudesse ver tudo, saber tudo, e que as doenças eram do corpo.
Bateu no meu ombro amigavelmente e continuou:
– Puro engano. Tive que ir para o hospital. Lá, fui bem tratado; afinal, acho que nunca fiz mal a ninguém. Mas eu não conhecia pessoa alguma. Outro engano meu, eu pensava rever meus parentes mortos. Ninguém me estava esperando. Então eu pensei: onde ir? Uma enfermeira gentil queria levar-me a uma colônia de recuperação, dizendo que eu precisava refazer-me, mas eu acho que ela tinha intenção de me abrigar, acreditando que eu não tivesse como me manter. Não gosto de ser pesado aos outros. Sei cuidar de mim.
Olhei-o e a custo consegui esconder a estupefação. Estava falando tranquila e educadamente.
– Continue – pedi.
– Bem. Insistiram para que eu ficasse, mas resisti. Afinal, estava morto. A escravidão tinha se acabado. Não era mais funcionário público, estava livre do casamento, dos filhos, do aluguel, do alfaiate, do mercado, do hospital, do horário, de tudo. Queriam aprisionar-me de novo. Acha que eu iria?
– Eles não queriam prendê-lo, queriam ajudar a sua recuperação – arrisquei, cauteloso.
– Sei que tinham boa intenção, mas eu tinha sede de viver, ver o mundo, ser livre. Saí do hospital deliciado, sentindo o gosto da liberdade! Pode imaginar o que seja?
– Posso – respondi convicto.
– Sem rumo, onde ir? Isso certamente me apavoraria na carne; agora, me fascinava. O mundo era meu!  Tudo quanto me fora proibido pela falta de dinheiro, agora eu poderia fazer. Tomei o ônibus e calmamente viajei, sem pensar no troco, no cobrador irritadiço, nos empurrões e no cheiro de suor. Isso não me afetava. Fui a uma agência de viagens e lá procurei saber do próximo cruzeiro. Queria viajar, ver outros povos, outros países; agora, aqui estou.
Parecia simples. Mas eu estava admirado.
– Está apreciando a viagem?
– Muito. A comida é de primeira, as bebidas são estrangeiras, e os divertimentos muito agradáveis.
– Você se alimenta bem? – indaguei curioso.
– Muito bem. Você sabe, a comida é muito bem feita e muito variada.
– Mas como você pode comer sem corpo?
Ele riu da minha ingenuidade.
– Você passa fome?
– Não. Tenho o suficiente.
– Pois eu posso escolher conforme o meu capricho. Há pessoas de gostos diferentes, e é só me ligar-me a elas e apreciar. Elas ficam alegres, nem percebem que dividem comigo.
Apesar de conhecer o assunto, fiquei um pouco chocado.
– Não acha que poderia passar sem isso? – aventurei com naturalidade.
– De modo algum. Como poderia ficar sem comer? Agora preciso ir. Vou jogar um pouco de pôquer. – Diante da minha estupefação, ajuntou: – É divertido. Posso ver as cartas do adversário e escolho o meu parceiro, ajudo-o a jogar. Ganhamos sempre, é claro. Depois festejamos juntos, bebendo um pouco ou namorando belas mulheres. Agora preciso ir. Acho que já vi sua cara em algum lugar. Por acaso morou no Rio de Janeiro?
– Morei – respondi meio sem jeito.
– Onde será que já nos vimos antes?
Ele se foi, contrafeito; custou-me um pouco aceitar aquilo a que acabara de assistir. Durante vários dias que passei no navio, ou que a ele voltei para ver meu amigo, pude observá-lo, alegre, ativo, sempre ao lado de algumas pessoas às quais envolvia com facilidade, participando de suas vidas.
Parece injusto isso? Não tenho capacidade para julgar. Mas até quando ele permanecerá assim? Só Deus sabe. O que eu notei é que ele, apesar de tudo, só passava por portas abertas, caminhava como os demais, e inclusive mudava de roupas conforme a hora e a atividade, o que me surprendeu muito.
[...]
Em todo o caso, preciso esclarecer que, apesar do que vi, nem sempre o espírito consegue se transformar em turista depois da morte. Não planejem viagem desse porte, porque aquele pobre amigo, depois de algum tempo, foi recolhido a um sanatório de uma colônia extraterrena em péssimo estado, viciado em álcool, em jogo e em dolorosas condições.
Quando me interessei pelo seu caso, fiquei sabendo que ele, em encarnação anterior, tinha sido um estróina que botara fora a fortuna paterna e, depois de longo sofrimento, deliberara renascer, tendo solicitado como auxílio a falta de dinheiro, os encargos de família, o emprego contensivo.
Triste, não? Aguentou tudo na carne, mas, assim que pôde, realizou tudo de novo.
[...]
"Bate-papo com o Além", de Zíbia Gasparetto pelo espírito Silveira Sampaio (1980).