Faz
muitos e muitos anos, mas ainda neste século, deu-se um crime de sangue em
Torres, violência que sacudiu de horror a pasmaceira do vilarejo.
Foi
assim: um casal possuía um hotel na Rua de Baixo, e sendo muito bonita a
esposa, provocou ela a atenção e logo a violenta paixão do delegado de polícia,
o qual se viu correspondido, disto surgindo arriscados encontros amorosos, tudo
naturalmente não escapando à bisbilhotice da população, que condenava o
escândalo.
O
marido tornou-se pois o estorvo natural àquele afeto doentio, sendo por isso
condenado a morrer, pelo delegado amoroso, que induziu um dos seus soldados à
execução do terrível projeto.
Em
noite escura postou-se o praça atrás de arbustos no pátio do estabelecimento,
em frente à porta da cozinha. Era aquele o momento em que o casal encerrava as
lides hoteleiras e aproveitava para o sossegado jantar em comum.
O
cenário estava armado: a noite, trevosa; a cozinha, fartamente iluminada pelo
grande lampião; somente o nenê no colo do pai é que impossibilitava a bala
fatal.
A
esposa pedia a criança ao incauto marido e insistia, com pretexto ora de mudar
a roupa do filhinho, ora de pô-lo na cama, e o pai, como que adivinhando, ainda
mais se agarrava ao filho e mais o mimava.
Porém
a maldade, vestida de mãe, venceu, e o inocente mudou de colo, instante mortal
em que o tiro certeiro prostrou o inditoso hoteleiro.
O
delegado de polícia, como era de sua obrigação, abriu o competente inquérito,
mas, após muito procurar, na vila e nos arredores, encerrou as buscas, por não
haver encontrado o matador.
José
Antônio Picoral, natural da Colônia São Pedro, e que já tinha hotel em Torres,
é que não aceitou a situação escandalosa do adultério e do assassínio, e por
isso comunicou o grave fato ao arcebispo de Porto Alegre, o qual cientificou o
chefe de polícia do Estado, e este logo despachou um delegado especial com três
praças para Torres, com a finalidade única de descobrir o criminoso e
prendê-lo.
Chegando
ao seu destino, a autoridade policial imediatamente ficou sabendo o que todos
sabiam; e depois de uns dias de trabalho, encerrou-o com o mesmo argumento do
seu colega local, e assim o fez saber à população chocada: ele não encontrara
elementos para dizer quem fora o matador do hoteleiro.
O
que logo se tornou evidente ao delegado especial foi que, enquanto ele
realizava as investigações, o torrense a cada instante inventava razões para se
ausentar e sempre levando seus dois praças bem armados, sinal de que não se
entregaria sem forte resistência armada. Mas as ausências até eram boas para a
nova autoridade, que preferia resolver o caso com a ajuda da astúcia, conforme
manifestara às autoridades locais, em segredo.
Havendo
finalizado sua missão, o novo delegado anunciou insistentemente que não havia
descoberto a autoria do assassínio e por isso ia-se despedir do povo do lugar
no domingo, sendo-lhe então prometido um churrasco de bota-fora, à qual festa
compareceu o assassino, recém chegado de uma de suas diligências.
O
salão estava repleto de autoridades e convidados e depois de muita carne e
muita cerveja, passados os discursos, vieram os abraços, sendo o delegado local
um dos primeiros, e assim que ele pôs os braços no seu superior, este o agarrou
com força e deu-lhe voz de prisão, enquanto os três soldados desarmavam o
estupefato homem e o levavam dali diretamente para a cadeia.
O
júri o condenou, juntamente com o executor e a adúltera co-autora, a penas de
reclusão, que foram cumpridas na Casa de Correção, na Capital.
Consta
que o casal de assassinos, após pagar a pena, juntou-se finalmente e abriu
pequeno comércio em Porto
Alegre ; e deles, além desta notícia, nunca mais se soube
nada, restando apenas algumas recordações do triste acontecimento na memória de
pessoas idosas de hoje, talvez contemporâneas do fato, ou dele tendo somente
ouvido falar, e do qual fazemos este registro sumário, já que é parte da rica
microistória torrense.
A
memória popular nunca deve ser desperdiçada, e foi num instante inspirado que
ouvimos de antigos torrenses que o casal, mais o nenê, deixou finalmente a
Capital e se radicou, ou na Vila São João ou no Passo de Torres, não se sabe ao
certo, ali dirigindo pequeno negócio; e o que houve dali para diante nós
deixamos aos novos pesquisadores a tarefa de o descobrir, pois afinal o
delegado consta como sendo de família local, o que até pode facilitar o
trabalho.
Remembranças de Torres – As
Vivências de uma Comunidade (1996), de Guido Muri (1916-2010).