quarta-feira, 8 de maio de 2013

O crime do delegado

Faz muitos e muitos anos, mas ainda neste século, deu-se um crime de sangue em Torres, violência que sacudiu de horror a pasmaceira do vilarejo.
Foi assim: um casal possuía um hotel na Rua de Baixo, e sendo muito bonita a esposa, provocou ela a atenção e logo a violenta paixão do delegado de polícia, o qual se viu correspondido, disto surgindo arriscados encontros amorosos, tudo naturalmente não escapando à bisbilhotice da população, que condenava o escândalo.
O marido tornou-se pois o estorvo natural àquele afeto doentio, sendo por isso condenado a morrer, pelo delegado amoroso, que induziu um dos seus soldados à execução do terrível projeto.
Em noite escura postou-se o praça atrás de arbustos no pátio do estabelecimento, em frente à porta da cozinha. Era aquele o momento em que o casal encerrava as lides hoteleiras e aproveitava para o sossegado jantar em comum.
O cenário estava armado: a noite, trevosa; a cozinha, fartamente iluminada pelo grande lampião; somente o nenê no colo do pai é que impossibilitava a bala fatal.
A esposa pedia a criança ao incauto marido e insistia, com pretexto ora de mudar a roupa do filhinho, ora de pô-lo na cama, e o pai, como que adivinhando, ainda mais se agarrava ao filho e mais o mimava.
Porém a maldade, vestida de mãe, venceu, e o inocente mudou de colo, instante mortal em que o tiro certeiro prostrou o inditoso hoteleiro.
O delegado de polícia, como era de sua obrigação, abriu o competente inquérito, mas, após muito procurar, na vila e nos arredores, encerrou as buscas, por não haver encontrado o matador.
José Antônio Picoral, natural da Colônia São Pedro, e que já tinha hotel em Torres, é que não aceitou a situação escandalosa do adultério e do assassínio, e por isso comunicou o grave fato ao arcebispo de Porto Alegre, o qual cientificou o chefe de polícia do Estado, e este logo despachou um delegado especial com três praças para Torres, com a finalidade única de descobrir o criminoso e prendê-lo.
Chegando ao seu destino, a autoridade policial imediatamente ficou sabendo o que todos sabiam; e depois de uns dias de trabalho, encerrou-o com o mesmo argumento do seu colega local, e assim o fez saber à população chocada: ele não encontrara elementos para dizer quem fora o matador do hoteleiro.
O que logo se tornou evidente ao delegado especial foi que, enquanto ele realizava as investigações, o torrense a cada instante inventava razões para se ausentar e sempre levando seus dois praças bem armados, sinal de que não se entregaria sem forte resistência armada. Mas as ausências até eram boas para a nova autoridade, que preferia resolver o caso com a ajuda da astúcia, conforme manifestara às autoridades locais, em segredo.
Havendo finalizado sua missão, o novo delegado anunciou insistentemente que não havia descoberto a autoria do assassínio e por isso ia-se despedir do povo do lugar no domingo, sendo-lhe então prometido um churrasco de bota-fora, à qual festa compareceu o assassino, recém chegado de uma de suas diligências.
O salão estava repleto de autoridades e convidados e depois de muita carne e muita cerveja, passados os discursos, vieram os abraços, sendo o delegado local um dos primeiros, e assim que ele pôs os braços no seu superior, este o agarrou com força e deu-lhe voz de prisão, enquanto os três soldados desarmavam o estupefato homem e o levavam dali diretamente para a cadeia.
O júri o condenou, juntamente com o executor e a adúltera co-autora, a penas de reclusão, que foram cumpridas na Casa de Correção, na Capital.
Consta que o casal de assassinos, após pagar a pena, juntou-se finalmente e abriu pequeno comércio em Porto Alegre; e deles, além desta notícia, nunca mais se soube nada, restando apenas algumas recordações do triste acontecimento na memória de pessoas idosas de hoje, talvez contemporâneas do fato, ou dele tendo somente ouvido falar, e do qual fazemos este registro sumário, já que é parte da rica microistória torrense.
A memória popular nunca deve ser desperdiçada, e foi num instante inspirado que ouvimos de antigos torrenses que o casal, mais o nenê, deixou finalmente a Capital e se radicou, ou na Vila São João ou no Passo de Torres, não se sabe ao certo, ali dirigindo pequeno negócio; e o que houve dali para diante nós deixamos aos novos pesquisadores a tarefa de o descobrir, pois afinal o delegado consta como sendo de família local, o que até pode facilitar o trabalho.
Remembranças de Torres – As Vivências de uma Comunidade (1996), de Guido Muri (1916-2010).