(...) Com júbilo indefinível abraçou o velho Ananias,
pondo-o ao corrente de suas edificações espirituais. O respeitável ancião
retribuiu-lhe o carinho com imensa bondade. Dessa vez, o ex-rabino não precisou
insular-se numa pensão entre desconhecidos, porque os irmãos do “Caminho” lhe
ofereceram franca e amorosa hospitalidade. Diariamente, repetia a emoção
confortadora da primeira reunião a que comparecera, antes de recolher-se ao
deserto. A pequena assembleia fraternal congregava-se todas as noites, trocando
ideias novas sobre os ensinamentos do Cristo, comentando os acontecimentos
mundanos à luz do Evangelho, permutando objetivos e conclusões. Saulo foi
informado de todas as novidades atinentes à doutrina, experimentando os
primeiros efeitos do choque entre os judeus e os amigos do Cristo, a propósito
da circuncisão. Seu temperamento apaixonado percebeu a extensão da tarefa que
lhe estava reservada. Os fariseus formalistas, da sinagoga, não mais se
insurgiam contra as atividades do “Caminho”, desde que o seguidor de Jesus
fosse, antes de tudo, fiel observador dos princípios de Moisés. Somente Ananias
e alguns poucos perceberam a sutileza dos casuístas que provocavam
deliberadamente a confusão em todos os setores, atrasando a marcha vitoriosa da
Boa Nova redentora. O ex-doutor da Lei reconheceu que, na sua ausência, o
processo de perseguição tomara-se mais perigoso e mais imperceptível,
porquanto, às características cruéis, mas francas, do movimento inicial,
sucediam as manifestações de hipocrisia farisaica, que, a pretexto de
contemporização e benignidade, mergulhariam a personalidade de Jesus e a
grandeza de suas lições divinas em criminoso e deliberado olvido. Coerente com
as novas disposições do foro íntimo, não pretendia voltar à sinagoga de
Damasco, para não parecer um mestre pretensioso a pugnar pela salvação de
outrem, antes de cuidar do aperfeiçoamento próprio; mas, diante do que via e
coligia com alto senso psicológico, compreendeu que era útil arrostar todas as
consequências e demonstrar as disparidades do formalismo farisaico com o
Evangelho: o que era a circuncisão e o que era a nova fé. Expondo a
Ananias o projeto de fomentar a discussão em torno do assunto, o velhinho
generoso estimulou-lhe os propósitos de restabelecer a verdade em seus
legítimos fundamentos.
sexta-feira, 8 de março de 2013
Fuga de Damasco
Para esse fim, no segundo sábado de sua permanência na
cidade, o vigoroso pregador compareceu à sinagoga. Ninguém reconheceu o rabino
de Tarso na sua túnica rafada, na epiderme tostada de sol, no rosto descarnado,
no brilho mais vivo dos olhos profundos.
Terminada a leitura e a exposição regulamentares, franqueada
a palavra aos sinceros estudiosos da religião, eis que o desconhecido galga a
tribuna dos mestres de Israel e, buscando interessar a numerosa assistência,
falou primeiramente do caráter sagrado da Lei de Moisés, detendo-se, apaixonado,
nas promessas maravilhosas e sábias de Isaías, até que penetrou o estudo dos
profetas. Os presentes escutavam-no com profunda atenção. Alguns se esforçavam
por identificar aquela voz que lhes não parecia estranha. A pregação vibrante
suscitava ilações de grande alcance e beleza. Imensa luz espiritual
transbordava dos raptos altiloquentes.
Foi aí que o ex-rabino, conhecendo o poder magnético já
exercido sobre o vultoso auditório, começou a falar do Messias Nazareno
comparando sua vida, feitos e ensinamentos, com os textos que o anunciavam nas
sagradas escrituras.
Quando abordava o problema da circuncisão, eis que a
assembleia rompe em furiosa gritaria.
– É ele!... É o traidor!... clamavam os mais audaciosos,
depois de identificar o ex-doutor de Jerusalém. – Pedra ao blasfemo!... É o
bandido da seita do “Caminho”!...
Os chefes do serviço religioso, por sua vez, reconheceram o
antigo companheiro, agora considerado trânsfuga da Lei, a quem se deviam impor
castigos rudes e cruéis.
(...)
Após as fases mais agudas do tumulto, o arqui-sinagogo,
tomando posição, determinou que o orador descesse da tribuna para responder ao
seu interrogatório.
O convertido de Damasco compreendeu de relance toda a calma
de que necessitava para sair-se com êxito daquela difícil aventura, e obedeceu
de pronto, sem protestar.
– Sois Saulo de Tarso, antigo rabino em Jerusalém? –
perguntou a autoridade com ênfase.
– Sim, pela graça do Cristo Jesus! – respondeu em tom firme
e resoluto.
– Não vem ao caso referências quaisquer ao carpinteiro de
Nazaré! Interessa-nos, tão-só, a vossa prisão imediata, de acordo com as
instruções recebidas do Templo – explicou o judeu em atitude solene.
– Minha prisão? – interrogou Saulo admirado.
– Sim.
– Não vos reconheço o direito de efetuá-la – esclareceu o
pregador.
Diante daquela atitude enérgica, houve um movimento de
admiração geral.
– Por que relutais? O que só vos cumpre é obedecer.
Saulo de Tarso fixou-o com decisão, explicando:
– Nego-me porque, não obstante haver modificado minha
concepção religiosa, sou doutor da Lei e, além disso, quanto à situação
política, sou cidadão romano e não posso atender a ordens verbais de prisão.
– Mas estais preso em nome do Sinédrio.
– Onde o mandado?
A pergunta imprevista desnorteou a autoridade. Havia mais de
dois anos, chegara de Jerusalém o documento oficial, mas ninguém podia prever
aquela eventualidade. A ordem fora arquivada cuidadosamente, mas não podia ser
exibida de pronto, como exigiam as circunstâncias.
– O pergaminho será apresentado dentro de poucas horas –
acrescentou o chefe da sinagoga um tanto indeciso.
E como a justificar-se, acrescentava:
– Desde o escândalo da vossa última pregação em Damasco,
temos ordem de Jerusalém para vos prender.
Saulo fixou-o com energia, e, voltando-se para a assembleia,
que lhe observava a coragem moral, tomada de pasmo e admiração, disse alto e
bom som:
– Varões de Israel, trouxe ao vosso coração o que possuía de
melhor, mas rejeitais a verdade trocando-a pelas formalidades exteriores. Não
vos condeno. Lastimo-vos, porque também fui assim como vós outros. Entretanto,
chegada a minha hora, não recusei o auxílio generoso que o céu me oferecia.
Lançais-me acusações, vituperais minhas atuais convicções religiosas; mas, qual
de vós estaria disposto a discutir comigo? Onde o sincero lutador do campo
espiritual que deseje sondar, em minha companhia, as santas escrituras?
Profundo silêncio seguiu-se ao repto.
– Ninguém? – perguntou o ardoroso artífice da nova fé, com
um sorriso de triunfo.
Conheço-vos, porque também palmilhei esses caminhos.
Entretanto, convenhamos em que o farisaísmo nos perdeu, atirando nossas
esperanças mais sagradas num oceano de hipocrisias. Venerais Moisés na
sinagoga; tendes excessivo cuidado com as fórmulas exteriores, mas qual a
feição da vossa vida doméstica? Quantas dores ocultais sob a túnica brilhante!
Quantas feridas dissimulais com palavras falaciosas! Como eu, devíeis sentir
imenso tédio de tantas máscaras ignóbeis! Se fôssemos apontar os feitos
criminosos que se praticam à sombra da Lei, não teríamos açoites para castigar
os culpados; nem o número exato das maldições indispensáveis à pintura de
semelhantes abominações! Padeci de vossas úlceras, envenenei-me também nas
vossas trevas e vinha trazer-vos o remédio imprescindível. Recusais-me a
cooperação fraterna; entretanto, em vão recalcitrais perante os processos
regeneradores, porque somente Jesus poderá salvar-nos! Trouxe-vos o Evangelho,
ofereço-vos a porta de redenção para nossas velhas mazelas e inda quereis
compensar meus esforços com o cárcere e a maldição? Recuso-me a receber
semelhantes valores em troca de minha iniciativa espontânea!... Não podereis
prender-me, porque a palavra de Deus não está algemada. Se a rejeitais, outros
me compreenderão. Não é justo abandonar-me aos vossos caprichos, quando o
serviço, a fazer, me pede dedicação e boa-vontade.
Os próprios diretores da reunião pareciam dominados por
forças magnéticas, poderosas e indefiníveis.
O moço tarsense passeou o olhar dominador sobre todos os
presentes, revelando a rigidez do seu ânimo poderoso.
– Vosso silêncio fala mais que as palavras – concluiu quase
com audácia.
– Jesus não vos permite a prisão do servo humilde e fiel.
Que a sua bênção vos ilumine o espírito na verdadeira compreensão das realidades
da vida.
Assim dizendo, caminhou resoluto para a porta de saída,
enquanto o olhar assombrado da assembleia lhe acompanhava o vulto, até que, a
passo firme, desapareceu em uma das ruas estreitas que desembocavam na grande
praça.
Como se despertasse, após o audacioso desafio, a reunião
degenerou em acaloradas discussões. O arqui-sinagogo, que parecia sumamente
impressionado com as declarações do ex-rabino, não ocultava a indecisão,
relutando entre as verdades amargas de Saulo e a ordem de prisão imediata. Os
companheiros mais enérgicos procuraram levantar-lhe o espírito de autoridade.
Era preciso prender o atrevido orador a qualquer preço. Os mais decididos
puseram-se à procura imediata do pergaminho de Jerusalém e, logo que o
encontraram, resolveram pedir auxílio às autoridades civis, promovendo
diligências. Daí a três horas, todas as medidas para a prisão do audacioso
pregador estavam assentadas. Os primeiros contingentes foram movimentados às
portas da cidade. Em cada uma postou-se pequeno grupo de fariseus, secundados
por dois soldados, a fim de burlarem qualquer tentativa de evasão.
Em seguida, iniciaram a devassa em bloco, na residência de
todas as pessoas suspeitas de simpatia e relações com os discípulos do
Nazareno.
Saulo, por sua vez, afastando-se da sinagoga, procurou
avistar-se com Ananias, ansioso da sua palavra amorosa e conselheira.
O sábio velhinho ouviu a narração do acontecido,
aprovando-lhe as atitudes.
– Sei que o Mestre – dizia o moço por fim – condenou as
contendas e jamais andou entre os discutidores; mas, também, jamais
contemporizou com o mal. Estou pronto a reparar meu passado de culpas.
Afrontarei as incompreensões de Jerusalém, a fim de patentear minha
transformação radical. (...)
O bondoso ancião acompanhava-lhe as palavras com sinais
afirmativos. Depois de confortá-lo com a sua aprovação, recomendou-lhe a maior
prudência. Seria razoável afastar-se quanto antes dali, do seu tugúrio. Os
judeus de Damasco conheciam a parte que tivera na sua cura. Por causa disso,
muita vez lhes suportara as injúrias e remoques. Certo, procurá-lo-iam, ali,
para prendê-lo. Assim, era de opinião que se recolhesse à casa da consóror
lavadeira, onde costumavam orar e estudar o Evangelho. Ela saberia acolhê-lo
com bondade.
Saulo atendeu ao conselho sem hesitar.
Daí a três horas, o velho Ananias era procurado e
interpelado. Atenta a sua conduta discreta, foi recolhido ao cárcere para
ulteriores averiguações.
O fato é que, inquirido pela autoridade religiosa, apenas
respondia:
– Saulo deve estar com Jesus.
Nos seus escrúpulos de consciência, o generoso velhinho
entendia que, desse modo, não mentia aos homens nem comprometia um amigo fiel.
Depois de preso e incomunicável 24 horas, deram-lhe liberdade após receber
castigos dolorosos. A aplicação de vinte bastonadas deixara-lhe o rosto e as
mãos gravemente feridos. Contudo, logo que se viu livre, esperou a noite e,
cautelosamente, encaminhou-se à choupana humilde onde se realizavam as prédicas
do “Caminho”. Reencontrando-se com o amigo, expôs-lhe o plano que vinha
remediar a situação.
– Quando criança – exclamou Ananias prazeroso – assisti à
fuga de um homem sobre os muros de Jerusalém.
E como se recapitulasse os pormenores do fato, na memória
cansada, perguntou:
– Saulo, terias medo de fugir num cesto de vime?
– Por quê? – disse o moço sorridente – Moisés não começou a
vida num cesto sobre as águas?
O velho achou graça na alusão e esclareceu o projeto. Não
muito longe dali, havia grandes árvores junto dos muros da cidade. Alçariam o
fugitivo num grande cesto, e depois, com insignificantes movimentos, ele
poderia descer do outro lado, em condições de encetar a viagem para Jerusalém,
conforme pretendia. O ex-rabino experimentou imensa alegria. Na mesma hora, a
dona da casa foi buscar o concurso dos três irmãos de mais confiança. E quando
o céu se fez mais sombrio, depois das primeiras horas da meia-noite, um pequeno
grupo se reunia junto a muralha, em ponto mais distante do centro da cidade.
Saulo beijou as mãos de Ananias, quase com lágrimas. Despediu-se em voz baixa
dos amigos, enquanto um lhe entregava volumoso pacote de bolos de cevada. Na
copa da árvore frondosa e escura, o mais jovem esperava o sinal, o moço
tarsense entrou na sua embarcação improvisada e a evasão se deu no âmbito
silencioso da noite.
(...)
Aos primeiros raios de sol, o fugitivo ia longe. Levava
consigo os bolos de cevada como única provisão, e o Evangelho presenteado por
Gamaliel como lembrança de tanto tempo de solidão e de luta. (...)
Extraído do livro "Paulo e Estêvão" (Capítulo III
– Lutas e humilhações), de Francisco Cândido Xavier. Romance ditado por
Emmanuel (episódios históricos do cristianismo primitivo). Publicado em 1941.