Há mais de 50 anos o Brasil conquistava na Suécia a sua primeira copa, onde Garrincha (1933–1983) fora um dos maiores protagonistas, se não o maior. "Um dos poucos brasileiros que dispensam apresentações", definiu o jornalista Ruy Castro no livro 'Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha'.
Início do capítulo "1958 – A vitória azul"
Garrincha não sabia cantar o Hino Nacional. Sua postura, durante a execução do virundu, era a pior do time: troncho, ligeiramente encurvado, mãos em invisíveis bolsos traseiros, pernas abertas em dez pras duas. Seu perfil era quase um S – o menos marcial possível. Mas, assim que ele recebera a primeira bola, um bailarino saltara de seu corpo e – como foi mesmo que os jornais disseram? – arrombara a Cortina de Ferro. Nos dias seguintes à partida contra a URSS, a Europa já não sabia o que escrever a seu respeito. Um jornal de Estocolmo deu em manchete: "PARABÉNS, GOTEMBURGO. NA QUINTA-FEIRA VOCÊS VERÃO GARRINCHA OUTRA VEZ!". Referia-se ao jogo seguinte do Brasil, agora pelas quartas-definal, contra o País de Gales. E, quando diziam Garrincha, não queriam dizer o Brasil, mas Garrincha mesmo, o homem-show.
Um jornalista francês classificou-o como "o maior reserva do mundo". Um inglês se perguntava por que ele não entrara antes: "Garrincha teria derrotado sozinho a Inglaterra". E outro sueco, seguramente mal informado, arriscou: "Não há dinheiro nos clubes europeus que possa pagar um jogador tão formidável". Será? No dia seguinte ao jogo contra a URSS, Garrincha recebeu o bicho das mãos de Adolpho Marques: cinqüenta dólares. E, no Brasil, anunciou-se que ele fora eleito o "desportista da semana" – prêmio: uma bicicleta Gulliver.
No sábado, véspera do jogo, o professor Carvalhaes chamara os jogadores de volta aos psicotestes. Queria ter certeza de que todos estavam em condições psicológicas de enfrentar a URSS. Dos onze que jogariam, reprovou nove. Gilmar, porque não conseguia traçar duas linhas paralelas – isso queria dizer que estava nervoso. Didi, ao lhe ser pedido que desenhasse o que lhe viesse à cabeça, fez uma casinha com chaminé. Quando Carvalhaes perguntou-lhe o que significava, Didi respondeu: "É a casinha que vou comprar com o dinheiro que pretendo ganhar na Copa" – por isso, Carvalhaes considerou-o mercenário, pouco patriota. Garrincha desenhou um círculo do qual saíam alguns traços. Podia ser o sol, uma bola, qualquer coisa. Garrincha disse que era a cabeça de Quarentinha, seu colega do Botafogo. Por isso também foi considerado inapto.
Carvalhaes levou o resultado dos testes a Feola. Apenas Pelé e Nílton Santos tinham sido aprovados. Entre o bom senso e a psicologia, Feola ficou com o bom senso. E, com o aval de Paulo Machado de Carvalho, gelou Carvalhaes pelo resto da Copa.
Aquele tinha sido o primeiro Brasil X URSS de todos os tempos. Na semana do jogo, Luís Carlos Prestes, secretário-geral do clandestino Partido Comunista Brasileiro, mandara uma mensagem à seleção na Suécia torcendo para que o Brasil derrotasse os soviéticos". Vindo de Prestes, velho inquilino da URSS, era um apoio sensacional. Mas O Globo não o perdoou. Em editorial de primeira página, desancou-o como demagogo e acusou-o de, com isso, tentar apagar sua infeliz declaração no Senado, em 1946, de que, no caso de uma guerra entre o Brasil e a Rússia, ficaria com a Rússia. Só faltava agora o almirante Pena Boto, chefe da Liga Anticomunista, ter torcido pela URSS. Depois da vitória os jornais foram ouvi-lo, mas o minúsculo e elétrico Pena Boto desapontou-os: não ouvira o jogo porque tinha mais o que fazer. Devia ser o único no Brasil a estar ocupado àquela hora.
Pela primeira vez desde 1950, a Copa saía de cada casa brasileira e se espalhava pelas ruas, pelos bares e em torno dos alto-falantes. No Rio, depois da vitória contra a URSS, carros e lambretas desfilaram do Leme ao Leblon agitando bandeiras e misturando-se às escolas de samba que desceram dos morros. Em São Paulo, a concentração foi no vale do Anhangabaú. Pela primeira vez desde 1950, havia esperança. Garrincha tornara a Copa possível.
O vencedor de Brasil X País de Gales já estaria entre os quatro finalistas da Copa. Quem perdesse, adeus – mais uma vez, o esforço de um ano seria decidido em noventa minutos. Para o País de Gales, aquele seria o terceiro jogo em cinco dias: no domingo, empatara com a Suécia em 0 X 0; na terça-feira, vencera a Hungria por 2 X 1, num duríssimo jogo-desempate pela segunda vaga em seu grupo; e agora, na quinta, enfrentava a nova sensação da Copa, o Brasil, num jogo de vida ou morte. O Brasil tivera esses mesmos cinco dias para descansar, namorar as suecas, fazer compras em Gotemburgo e preparar planos de jogo. E, mesmo assim, Gales seria a sua pior parada: um ferrolho medieval, com os onze jogadores na defesa.
Didi declararia depois que sua atuação contra o País de Gales tinha sido a maior de sua vida. E Pelé fez um dos gols mais deslumbrantes dos mil e tantos que ainda iria marcar: recebeu de Didi na marca do pênalti, de costas para o gol; deu um lençol em Williams, virou-se, petequeou com a esquerda e, sem deixar a bola cair, fulminou o goleiro Kelsey com a direita. Em seguida, foi beijar a bola ajoelhado dentro do gol, com quatro ou cinco companheiros espremendo-o contra as redes. Mesmo que não fosse um gol de antologia, foi o mais importante de sua carreira: garantiu a vitória por 1 X 0 e a passagem do Brasil às semifinais da Copa. Mas esse gol só saiu aos 28 minutos do segundo tempo, depois de mais de uma hora de bombardeio.
Garrincha, caçado em campo por três galeses ao mesmo tempo, não repetiu o seu carnaval. Uma única vez o lateral-esquerdo Hopkins ousou enfrentá-lo sozinho. Pois foi nessa vez que Garrincha o driblou e deu o passe a Didi, que resultou no gol de Pelé.
Enquanto o Brasil martelava a muralha de Gales, dois corações palpitavam no palácio do Catete, no Rio, sede do governo federal: o do presidente Juscelino Kubitschek e o de seu convidado especial – Amaro, pai de Garrincha. Na manhã do jogo, dois oficiais de gabinete de JK tinham ido a Pau Grande convidá-lo a ouvir o jogo com o presidente da República. Amaro, meio zonzo, aceitara. Obrigara seu compadre Nico Cozzolino a ir com ele e vestira sua melhor roupa de missa: terno cáqui peço-a-palavra e encolhido nas mangas, chapéu com a fita manchada de suor, guarda-chuva desbotado, meias brancas e sapatos Tank pretos.
Por estar na presença de Juscelino, Amaro teve de controlar-se. Em Pau Grande, quando ouvia que Garrincha estava levando pontapés como um cachorro, puxava o punhal e ameaçava estripar o rádio. Ou então dava-lhe uns tapas, com o que queimava algumas válvulas e o rádio saía do ar. Mas ali, em palácio, com a sala cheia de homens que não conhecia, Amaro tinha vergonha – embora estivesse com o punhal na bainha sob o paletó. Quando Pelé fez o gol, Amaro mal conseguiu engolir o palavrão que esteve a ponto de explodir. Juscelino abriu o seu melhor sorriso chinês e disse o palavrão por ele. Amaro regou o jogo com cerveja, porque não lhe ofereceram pinga e ele recusara o uísque. Na saída, Juscelino deu-lhe uma nota de duzentos cruzeiros, agradeceu-lhe por tudo que seu filho vinha fazendo pelo Brasil e mandou um carro preto de chapa branca levá-lo de volta a Pau Grande.
Com aquela vitória, o Brasil já era, na pior das hipóteses, o quarto time do mundo. Na opinião deste mesmo mundo, merecia ser o primeiro. Deixara de ser apenas uma constelação de estrelas egoístas, como no passado, e tornara-se um conjunto, uma equipe – tão eficiente que, quando uma delas, Garrincha, resolvia brilhar por conta própria, seus companheiros descansavam e as arquibancadas se iluminavam de sorrisos.