(...)
Na segunda noite acomodaram-se em pequena caverna, algo distante do trilho
estreito, logo após os derradeiros tons do crepúsculo. Depois de frugalíssima
refeição, passaram a comentar animadamente os feitos da igreja de Jerusalém.
Noite fechada e ainda suas vozes quebravam o grande silêncio.
Desdobrando
os assuntos, passaram a falar das excelências do Evangelho, exaltando a
grandeza da missão de Jesus-Cristo.
–
Se os homens soubessem... – dizia Barnabé fazendo comparações.
–
Todos se reuniriam em torno do Senhor e descansariam – rematava Paulo cheio de
convicção.
–
Ele é o Príncipe que reinará sobre todos.
–
Ninguém trouxe a este mundo riqueza maior.
–
Ah! comentava o discípulo de Simão Pedro – o tesouro de que foi mensageiro
engrandecerá a Terra para sempre.
E
assim prosseguiam, valendo-se de preciosas imagens da vida comum para
simbolizar os bens eternos, quando singular movimento lhes despertou atenção.
Dois homens armados precipitaram-se sobre ambos, à fraca luz de uma tocha acesa
em resinas.
–
A bolsa! – gritou um dos malfeitores.
Barnabé
empalideceu ligeiramente, mas Paulo estava sereno e impassível.
–
Entreguem o que têm ou morrem – exclamou o outro bandido, alçando o punhal.
Olhando
fixamente o companheiro, o ex-rabino ordenou:
–
Dá-lhes o dinheiro que resta, Deus suprirá nossas necessidades de outro modo.
Barnabé
esvaziou a bolsa que trazia entre as dobras da túnica, enquanto os malfeitores
recolhiam, ávidos, a pequena quantia.
Reparando
nos pergaminhos do Evangelho que os missionários consultavam à luz da tocha
improvisada, um dos ladrões interrogou desconfiado e irônico:
–
Que documentos são esses? Faláveis de um príncipe opulento... Ouvimos
referências a um tesouro... Que significa tudo isso?
Com
admirável presença de espírito, Paulo explicou:
–
Sim, de fato estes pergaminhos são o roteiro do imenso tesouro que nos trouxe o
Cristo Jesus, que há de reinar sobre os príncipes da Terra.
Um
dos bandidos, grandemente interessado, examinou o rolo das anotações de Levi.
–
Quem encontrar esse tesouro – prosseguia Paulo, resoluto –, nunca mais sentirá
necessidades.
Os
ladrões guardaram o Evangelho cuidadosamente.
–
Agradecei a Deus não vos tirarmos a vida – disse um deles.
E
apagando a tocha bruxuleante, desapareceram na escuridão da noite.
Quando
se viram a sós, Barnabé não conseguiu dissimular o assombro.
–
E agora? – perguntou com voz trêmula.
–
A missão continua bem – glosou Paulo cheio de bom ânimo –, não contávamos com a
excelente oportunidade de transmitir a Boa Nova aos ladrões.
O
discípulo de Pedro, admirando-se de tamanha serenidade, voltou a dizer:
–
Mas, levaram-nos, também, os derradeiros pães de cevada, bem como as capas...
–
Haverá sempre alguma fruta na estrada – esclarecia Paulo, decidido – e, quanto
às coberturas, não tenhamos maior cuidado, pois não nos faltará o musgo das
árvores.
E,
desejoso de tranquilizar o companheiro, acrescentava:
–
De fato, não temos mais dinheiro, mas julgo não será difícil conseguir trabalho
com os tapeceiros de Antioquia de Pisídia. Além disso, a região está muito
distante dos grandes centros e posso levar certas novidades aos colegas do
ofício. Esta circunstância será vantajosa para nós.
Depois
de tecerem esperanças novas, dormiram ao relento, sonhando com as alegrias do
Reino de Deus.
No
dia seguinte, Barnabé continuava preocupado. Interpelado pelo companheiro,
confessou compungido:
–
Estou resignado com a carência absoluta de recursos materiais, mas não posso
esquecer que nos subtrairam também as anotações evangélicas que possuíamos.
Como recomeçar nossa tarefa? Se temos de cor grande parte dos ensinamentos, não
poderemos conferir todas as expressões...
Paulo,
todavia, fez um gesto significativo e, desabotoando a túnica, retirou alguma
coisa que guardava junto do coração.
–
Enganas-te, Barnabé – disse com um sorriso otimista –, tenho aqui o Evangelho
que me recorda a bondade de Gamaliel. Foi um presente de Simão Pedro ao meu
velho mentor, que, por sua vez, mo deu pouco antes de morrer.
O
missionário de Chipre apertou nas mãos o tesouro do Cristo. O júbilo voltou a
iluminar-lhe o coração. Poderiam dispensar todo o conforto do mundo, mas a
palavra de Jesus era imprescindível. (...)
Extraído
do livro "Paulo e Estêvão" (Capítulo IV – Primeiros labores
apostólicos), de Francisco Cândido Xavier. Romance ditado por Emmanuel
(episódios históricos do cristianismo primitivo). Publicado em 1941.